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Caixa dois, Código Eleitoral e o “pacote anticrime” de Moro

O que era errado, agora é certo na cartilha do ministro Sérgio Moro

Gabriel Borges Llona – Desde que o ministro da Justiça Sergio Moro, apresentou no início de fevereiro seu pacote de “medidas anticrime”, diversos aspectos vêm sendo analisados e esmiuçados por especialistas e pela imprensa. Uma das principais alterações na legislação atual que chamou a atenção é a que modifica o Código Eleitoral, especificamente no que tange os crimes eleitorais, como é o caso do art. 350 (omissão/falsificação de documentos). A proposta apresentada por Moro incluía no referido Código o art. 350-A para tipificar a prática conhecida por “caixa dois” nas campanhas eleitorais.

O caixa dois, por ainda não possuir tipificação específica como crime, é enquadrado no artigo 350 do Código Eleitoral, que prevê como crime “omitir, em documento público ou particular, declaração que dele devia constar, ou nele inserir ou fazer inserir declaração falsa ou diversa da que devia ser escrita, para fins eleitorais”, com pena de reclusão de até cinco anos.

Como se vê, o  caput do art. 350 do Código Eleitoral é completamente abrangente e, embora não disponha especificamente sobre caixa dois, muito menos sobre sua aplicação nos trâmites de prestação de contas, na prática, acaba sendo empregado nos casos de fraudes realizadas nas prestações de contas declaradas pelos candidatos, em especial naquelas em que se deixa de declarar determinada receita ou despesa.

A “tipificação” do crime pretendida por Moro possuía o intuito de aprimorar a penalização daqueles que praticassem o ilícito, determinando, dentre outras medidas, o aumento da pena pela sua prática para o mínimo de dois anos, podendo, ainda, ser superior a cinco anos, se o fato não constituísse crime mais grave (corrupção, por exemplo) ou se houvesse a participação de agente público. Além disso, a norma legal visava a ampliar o alcance de sua aplicação, abrangendo, também, aqueles que contribuíssem com caixa dois, ao invés de limitar apenas aos responsáveis pelas contas de campanha – candidatos e administradores financeiros –, como determina atualmente o dispositivo.

Os termos da medida apresentada dispunham que:

XIV) Medida para melhor criminalizar o uso de caixa dois em eleições:

Mudança no Código Eleitoral (Lei nº 4.737/1965):

“Art. 350-A. Arrecadar, receber, manter, movimentar ou utilizar qualquer recurso, valor, bens ou serviços estimáveis em dinheiro, paralelamente à contabilidade exigida pela legislação eleitoral.

Pena – reclusão de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, se o fato não constitui crime mais grave.

  • 1º Incorre nas mesmas penas quem doar, contribuir ou fornecer recursos, valores, bens ou serviços nas circunstâncias estabelecidas no caput.
  • 2º Incorrem nas mesmas penas os candidatos e os integrantes dos órgãos dos partidos políticos e das coligações quando concorrerem, de qualquer modo, para a prática criminosa.
  • 3º A pena será aumentada em 1/3 (um terço) a 2/3 (dois terços), no caso de algum agente público concorrer, de qualquer modo, para a prática criminosa.”

Todavia, embora tal medida – tipificação do crime de caixa dois no Código Eleitoral – mostre-se adequada e necessária, o ministro Sergio Moro, no último dia 19, acabou por desmembrar o projeto de inclusão do art. 350-A no Código Eleitoral de seu “Pacote Anticrime”, justificando, em resumo, que “o caixa dois é um crime grave, mas não tem a mesma gravidade de corrupção, crime organizado e crimes violentos”.

Embora tal retirada se mostre dissonante à biografia do ministro, fato é que a medida apresentada anteriormente, lamentavelmente, veio acompanhada de muitas lacunas e problemas quanto à sua aplicação, especialmente para aqueles que atuam na seara eleitoral, justificando, dessa forma, uma necessidade de melhores ajustes antes de sua aprovação pela Câmara.

Isso porque a criação do tipo penal do caixa dois no Código Eleitoral, conforme proposto pelo ministro, acaba por fortalecer a tese de que, até a criação de tal dispositivo, o mesmo constituir-se-ia em fato atípico, desqualificando, assim, inúmeras decisões já proferidas com amparo no artigo 350 do Código Eleitoral, implicando uma grande insegurança jurídica não só para os atuantes da área, mas, principalmente, para aqueles candidatos já condenados por tal fato.

Além disso, a extensão do alcance da aplicação do dispositivo a terceiros que contribuíram no caixa dois, por meio de doação ou fornecimento de bens e serviços à campanha eleitoral, também se mostrou nebuloso, haja vista que não há na norma legal qualquer especificação sobre a forma como será realizada.

Vale lembrar que aqueles que contribuem com as campanhas eleitorais não participam ativamente, tampouco possuem o conhecimento sobre as informações declaradas pelos candidatos em suas prestações de contas, sendo tais informações de responsabilidade exclusiva dos candidatos e seus agentes incumbidos para tanto. Quanto à penalização pela prática do ilícito, os terceiros responsáveis por dar causa a tal ato, como um fornecedor que frauda uma nota fiscal para burlar os limites e vedações impostos pela legislação eleitoral sobre a prestação de contas, pode atualmente, ser condenado em conjunto com o respectivo candidato.

Nos termos da proposta anteriormente apresentada pelo ministro, porém, seria possível que um doador ou um fornecedor respondesse criminalmente sozinho, ou seja, sem a participação do candidato no polo passivo, pela realização de uma despesa que não deu causa, ou sobre uma doação que não fosse por este cidadão realizada, o que poderia, em determinados casos, aumentar ainda mais a impunidade daqueles verdadeiros responsáveis pela prática do crime.

É certo que há casos em que o doador e/ou o prestador de serviço, de má-fé, pratica o ato em prol de uma campanha eleitoral via caixa dois. E, justamente, por conta disso, é que a norma legal precisa ser melhor detalhada e aprimorada para tal aplicação, até mesmo para que esta não tenha propósito diverso a qual foi criada.

De igual modo, também se estendem as diversas incertezas acerca do marco temporal da prática do crime, pois, da leitura do dispositivo legal, não é possível compreender se sua consumação se dá no ato da arrecadação, doação, contribuição etc. pelo agente, ou no ato da prestação de contas pelo candidato, como ocorre na aplicação do atual art. 350 do Código Eleitoral.

Em uma análise mais profunda, inúmeras são as dúvidas e lacunas que surgem a partir da proposta anteriormente apresentada pelo ministro da Justiça. Contudo, é compreensível que a norma proposta apresente certas imperfeições, especialmente se tratando de um assunto tão complexo como a prestação de contas, que passa por constantes mudanças ao longo de cada eleição.

Nesse passo, ainda que se mostre duvidosa a intenção do atual ministro no desmembramento do pacote apresentado, podendo resultar até em uma tramitação ainda mais lenta na tão esperada criminalização do caixa dois, é certo que tal separação do pacote pode servir para que todas estas questões sejam mais bem esmiuçadas antes de sua apresentação à Câmara dos Deputados, e até sua efetiva produção de efeitos no mundo jurídico.

A partir de tais aperfeiçoamentos, observados, obviamente, os demais regramentos eleitorais, a presente medida poderá representar um novo cenário no viés eleitoral, coibindo ou, ao menos, diminuindo inúmeros desvios e prática de caixa dois em campanhas eleitorais, cujo fim é tão aclamado pela população.

Para tanto, devido às inúmeras mudanças de entendimento do atual governo e seus respectivos ministérios, é necessário que se fique atento para que referida medida não fique “perdida no tempo” e resulte em um atraso ainda maior na reforma da legislação para se adequar ao combate dos crimes eleitorais.

*Advogado, é especialista em Direito Eleitoral do escritório Vilela, Silva Gomes & Miranda Advogados.

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