ALCÂNTARA-MA

Festejo do Divino em Alcântara-MA: entenda a tradição secular realizada todos os anos

A festividade que une o sagrado e o profano começou a ser enraizada no município desde meados do século XIX

Percorrendo ruas , becos e casarões antigos, o Festejo do Divino Espírito Santo, tradição secular rica em significados e religiosidade, adquire características únicas na cidade de Alcântara, a 22 km de São Luís. Com duração de 12 dias no mês de maio, a festividade que une o sagrado e o profano começou a ser enraizada no município desde meados do século XIX.

Atraindo milhares de visitantes anualmente de várias partes do mundo, o festejo é uma das festas mais populares para os maranhenses, principalmente para os alcantarenses. Este ano, a programação teve início no dia 8 de maio e se encerrou neste domingo (19).

Com base em entrevistas com pesquisadores e membros da comunidade que vivenciam essa tradição de perto há anos, o G1 reuniu os principais aspectos da festividade, que este ano teve o apoio da Prefeitura de Alcântara, por meio da Secretaria Municipal de Cultura de Turismo e do Governo do Maranhão, através da Secretaria de Estado da Cultura (Secma).

Origem da Festa do Divino

Igreja de Nossa Senhora do Carmo em Alcântara (MA) — Foto: Divulgação/Felipe Spider

A origem da festa do Divino Espírito Santo remonta à construção da Igreja do Espírito Santo em Alenquer, Portugal, no século XIII, por iniciativa da rainha Isabel. A tradição foi trazida ao Brasil pelos colonizadores no século XVII, assumindo variações em cada região. No Maranhão, segundo historiadores, o culto ao Divino Espírito Santo teve início com os colonos açorianos, portugueses e seus descendentes.

Festa do Divino Espírito Santo reúne adultos e crianças em Alcântara — Foto: Paulo Soares

A partir de meados do século XIX, a tradição da festa do Divino começou a ser enraizada entre a população da cidade de Alcântara, de onde se espalhou para o resto do Maranhão, tornando-se muito popular entre as diversas camadas da sociedade, especialmente as mais pobres.

No município, a festa foi influenciada pelas missões católicas dos Carmelitas, responsáveis pela construção da Igreja do Carmo no século XVII, onde acontecem as celebrações da festa do Divino. Tudo gira em torno do culto ao Divino Espírito Santo, com referências à antiga monarquia portuguesa.

Hierarquia

A cada ano, um império simbólico é criado em Alcântara, com membros da corte escolhidos entre os moradores da cidade. A estrutura hierárquica inclui um imperador ou imperatriz (alternadamente a cada ano), mordomos régios e baixos.

A estrutura hierárquica inclui um imperador ou imperatriz (alternadamente a cada ano) — Foto 1: Rodrigo Ribeiro — Foto 2: Ana Thália Silva
A estrutura hierárquica inclui um imperador ou imperatriz (alternadamente a cada ano) — Foto 1: Rodrigo Ribeiro — Foto 2: Ana Thália Silva

Cada festeiro seleciona um jovem para representá-lo no trono, e a família dessa criança ou adolescente arca com as despesas. O mestre-sala, é um profundo conhecedor das tradições, que orienta todos os passos do ritual. Os rituais também são acompanhados por bandeireiros e caixeiras, que tocam o batuque. O chefe da Casa do Divino de Alcântara, Haroldo Júnior, explica as atribuições dos mestre-sala.

O mestre-sala é uma espécie de auxiliar de cada festeiro, cada mordomo, tem um mestre-sala. E com o falecimento do coordenador, sempre o mestre-sala assume a função de coordenador. Hoje nós temos o seu Antônio de Coló, e ele é responsável por escolher esses mordomos baixos”, disse.

Ao G1, a antropóloga e professora do departamento de Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Maranhão (UFMA), Marilande Abreu, explicou como se constitui essa hierarquia.

As crianças formam esse império e nesse período da festa elas se vestem e são tratadas como reis ou como rainhas, e tem uma estrutura, uma hierarquia nesse império. No topo da hierarquia, nós temos o imperador e a imperatriz, que podem ser conhecido também como rei ou rainha. Temos também o Mordomo Régio e a Mordoma Régia e, após, nós temos o Mordomo Mor e a Mordoma Mor”, disse.

Os mordomos baixos são escolhidos entre as pessoas da comunidade que se dispõem ou têm um envolvimento prévio com o festejo, e a coordenação se aproxima delas para verificar seu interesse em participar.

O mordomo régio, que atua como vice do imperador, geralmente é escolhido entre aqueles que já serviram como mordomos baixos em anos anteriores — Foto: Ana Thália Silva

O sistema hierárquico do festejo é organizado em três escalões:

  • primeiro escalão – imperador ou imperatriz;
  • segundo escalão – mordomos régios;
  • terceiro escalão – mordomos baixos.

O mordomo régio, que atua como vice do imperador, geralmente é escolhido entre aqueles que já serviram como mordomos baixos em anos anteriores.

Já o imperador ou imperatriz é selecionado dentre aqueles que já passaram pelos cargos de mordomo baixo e mordomo régio, seguindo assim uma hierarquia estabelecida.

Embora haja casos excepcionais em que alguém possa pular diretamente para a posição de imperador, devido a uma promessa ou circunstâncias específicas, a norma é que se complete a trajetória em todos os escalões: primeiro como mordomo baixo, depois como mordomo régio, e finalmente como imperador.

Particularidades

Os preparativos para a grande festa são organizados por toda a cidade, sobretudo pelos mais humildes, durante todo o ano – com decorações, preparação de doces, comidas, bebidas ou na recepção aos visitantes.

Símbolos da festa do Divino em Alcântara — Foto: Ana Thália Silva

Em outras regiões do estado, a festa do Divino são estritamente ligadas às religiões afro-brasileiras. Com exceção de Alcântara, que é organizada com o apoio do poder público e sem vínculo direto com terreiros, a grande maioria das festas do Divino no Maranhão são realizadas em casas de Tambor de Mina, geralmente com início no sábado de aleluia.

Por mais que tenha sido trazida por portugueses, por mais que tenha um viés católico, esses elementos foram, de algum modo, ressignificados e transformados a partir das religiões de matriz africana, e especificamente, no Maranhão, pelo Tambor de Mina. Podemos fazer uma análise dessa festa nos terreiros de mina como uma contracolonialidade, como uma resistência, inclusive, ao processo de colonização”, diz a professora.

A cada ano, ao final da festa, imperador e imperatriz repassam seus cargos aos mordomos que os ocuparão no ano seguinte, recomeçando o ciclo. A tradição acontece em um salão chamado tribuna, que representa um palácio real, com uma decoração que remete à isto. A abertura e o fechamento da tribuna marcam início e o fim da festa.

Visita da Mordoma Luiza durante a festividade — Foto: Ana Thália Silva

O ciclo, que dura cerca de 12 dias, é divido em diversos momentos: abertura da tribuna, busca e levantamento do mastro, visita dos impérios, missa e cerimônia dos impérios, derrubamento do mastro, repasse das posses reais, fechamento da tribuna e carimbó de caixeiras. Esse ciclo, segundo Marilande, se repete nos terreiros de tambor de mina, mas não de uma forma padronizada. Cada terreiro vai ter um calendário de atividades e especificidades de suas festas.

“Nos terreiros de mina, acontecem também a busca e o levantamento do mastro, ladainhas, caixeiras, a tribuna e o almoço para o Império. Isso tudo vai ter, mas cada casa de terreiro vai ter a sua especificidade. […] Ou seja, não tem um único padrão. Cada casa, de cada terreiro, vai fazer a sua festa de acordo com o calendário de atividade deles, que podem acontecer em maio, julho, agosto, setembro, outubro ou em qualquer outra data do ano”, diz a antropóloga.

O mastro

O carregamento do mastro é uma atividade tradicionalmente masculina, exigindo força física significativa. Na quarta-feira, véspera da Ascensão do Senhor, o mastro é recoberto de murta, uma planta sagrada usada em outros rituais religiosos.

Ritual de subida do mastro na Praça da Matriz em frente a Igreja de São Matias — Foto: Ana Thália Silva

Em um cortejo pelas ruas das cidades, acompanhadas pelas caixeiras que cantam louvores ao Divino Espírito Santo, os homens descem até o porto para buscar o mastro.

O mastro é um tronco de uma árvore que vai ser pego na floresta, na mata, dias antes, para ser preparado, com todo um ritual. Ele vai ser enterrado no solo, no terreiro, e vai ser todo decorado com folhas, com frutas, com água e refrigerante. O levantamento do mastro significa a abertura da festa e o derrubamento dele significa o encerramento da festa”.

Preparação do mastro 

O cortejo segue em direção às casas dos festeiros, onde o mastro é defumado. No Porto do Jacaré, principal ponto de partida e chegada de Alcântara, é colocado o Mastro da Imperatriz, onde permanecerá até o dia de seu levantamento.

Festeiros se reúnem dentro das matas para a retirada dos mastros. — Foto: Dney Justino

As caixeiras

Entre os elementos mais importantes da Festa do Divino estão as caixeiras, senhoras devotas com o encargo de tocar caixas e entoar cânticos, repetidos de forma memorizada ou improvisados, em louvor ao Divino Espírito Santo.

Entre os elementos mais importantes da Festa do Divino estão as caixeiras — Foto: Ana Thália Silva

As caixeiras são geralmente senhoras, geralmente senhoras negras, numa forte ligação com as religiões afroameríndias, com uma forte ligação também com o tambor de mina. Elas vão tocar caixa, como também vai ter a ladainha. E esse toque de caixa, ele se dá durante várias etapas da festa”, explica a antropóloga.

Com tambores de pele animal, as mulheres participam de diversas etapas da festa – no levantamento do mastro, antes e depois da ladainha, no almoço para o império e no derrubamento do mastro.

Os banquetes e o doce de espécie

Durante a festividade, os banquetes são momentos de grande simbolismo. Cada dia da festa, uma casa escolhida oferece um banquete gratuito, onde são servidas comidas típicas da região, incluindo o famoso doce de espécie. Esses banquetes são uma demonstração de fartura e união, onde todos são convidados.

Durante a festividade, os banquetes são momentos de grande simbolismo — Foto: Ana Thália Silva

Segundo a lenda, o doce de espécie é originário de uma adaptação feita pelos escravizados a partir de uma receita portuguesa, o doce de espécie combina coco, cravo e canela. Segundo a lenda, o doce foi preparado para a visita de Dom Pedro II a Alcântara, embora ele nunca tenha aparecido. O povo, já preparado para a visita, realizou a festa em sua ausência, vestindo crianças com trajes nobres e organizando um cortejo até a igreja matriz, onde o doce de espécie era a estrela do banquete.

A modelo maranhense Yara Sá, participante do Desafio das Panelas, levou a receita para o programa da Ana Maria Braga — Foto: Arquivo Pessoal/Montagem g1

A modelo maranhense Yara Sá, participante do Desafio das Panelas do programa da TV Globo Mais Você, levou a receita para a Ana Maria Braga. Inspirada pela tradição e pela história da festa do Divino, ela decidiu incluir o doce em seu jantar temático sobre a cultura maranhense, adaptando a receita para reduzir o açúcar e manter-se fiel ao preparo original, sem o uso de leite condensado. Ao G1, a modelo destacou a importância do resgate à cultura do alimento.

Acho que o doce de espécie é muito rico de história, traz uma abordagem que eu acho que precisa ser trazida de volta, que é a cultura do alimento, que a gente está muito em uma abordagem, digamos assim, de uma cultura funcional, esquecendo que o alimento é mais do que nutriente. […] Eu acho que isso merece ser resgatado, a cultura do alimento, a ancestralidade também, porque comida tem o aspecto social também”, diz Yara.

Por G1MA (Estagiário sob supervisão de Liliane Cutrim)

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