Jornalista Ana Paula Araújo lança livro sobre violência sexual no Brasil
"O estupro é o único crime em que a vítima é quem sente vergonha", diz Ana Paula Araújo
“Eu não conheço uma mulher que não tenha passado por algum episódio de abuso”, afirma Ana Paula Araújo. Ao perceber que a violência sexual faz parte da vida de todas as mulheres, a jornalista decidiu mergulhar em uma investigação para tentar fazer um retrato do que permite que essa realidade se perpetue no país que registra um estupro a cada onze minutos. Depois de quatro anos de trabalho e mais de uma centena de entrevistas, ela lança, em 5 de outubro, o livro “Abuso: a cultura do estupro no Brasil”, pela Globo Livros.
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— Seja um estupro mais violento ou pequenos abusos no dia a dia, dentro do transporte público, as piadinhas absurdas, aquele tio que se aproveita para passar a mão na hora de um abraço, o abuso sexual é um fantasma na vida de todas nós. Ou a mulher já passou por isso e tenta superar o trauma ou está sempre com medo, desviando dessas situações — afirma a jornalista, que define a cultura do estupro como “um conjunto de crenças machistas que validam o estupro e a violência sexual.”
Depois de quatro anos de pesquisa e mais de uma centena de entrevistas, a jornalista lança ‘Abuso’, em que faz um retrato da cultura do estupro.
Ao longo de quatro anos, nos intervalos da sua rotina como apresentadora do Bom Dia Brasil, as coberturas da Copa do Mundo, na Rússia, e as eleições presidenciais de 2018, Araújo revisitou casos emblemáticos de violência sexual e entrevistou mais de uma centena de pessoas, entre sobreviventes de estupro, familiares, médicos, juristas, especialistas em segurança pública e em transtorno de estresse pós-traumático, que é uma das sequelas mais comuns entre as vítimas, e até mesmo os próprios estupradores condenados, que conversaram com ela de dentro da prisão. O livro conta com pesquisa do também jornalista Marcos Di Genova, que acompanhou Araújo nas viagens.
O fortalecimento do movimento de mulheres, que nos últimos anos passou a denunciar cada vez mais a cultura do estupro e a violência de gênero, foi o que a motivou a mergulhar nessa investigação. Ela espera que o livro contribua para o debate e sirva como um legado para que a geração de sua filha, hoje com 14 anos, viva em um futuro onde as mulheres “possam se desenvolver e crescer sem ter esse medo constante.”
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— Me deixou muito triste constatar que o estupro é o único crime em que as vítimas é que sentem vergonha. As pessoas que sofrem violência sexual têm vergonha de falar, como se elas que tivessem cometido um crime. Eu conto no livro um episódio que aconteceu comigo no transporte público, e mesmo esse episódio sendo relativamente bobo perto de tantas histórias horrorosas, eu fiquei super constrangida de contar — diz Araújo, afirmando que levou meses para decidir se compartilharia ou não a sua vivência no livro.
— Foi um grande dilema. Durante meses, pensei se me mantinha apenas como jornalista observadora ou se me expunha e até que ponto eu me expunha. Até que cheguei a conclusão que precisava me expor para as pessoas não acharem que eu falava de um ponto de vista de alguém que nunca sofreu nada parecido e não consegue entender o que é. Escolhi essa história por pensar que é a mais corriqueira. Toda mulher que usa transporte público já passou por alguma situação assim — conta a jornalista, se referindo ao episódio relatado no livro, sobre o dia em que acordou de um cochilo dentro de um ônibus no Rio de Janeiro com as mãos de um homem desconhecido nas suas coxas.
A conduta, que na época não configuraria crime, hoje poderia ser enquadrada como importunação sexual, tipificação criada em 2018. No trabalho de apuração, Araújo notou, no entanto, que a lei ainda é pouco conhecida e pouco aplicada Brasil afora.
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— É uma lei relativamente nova. Em 2009, houve uma mudança na lei de estupro que a deixou mais abrangente, enquadrando além da penetração vaginal, o sexo anal forçado e a penetração com objetos. Tudo isso antes era considerado atentado violento ao pudor. Esse crime deixou de existir e tudo passou a ser considerado estupro. Em 2018, acharam que a pena era muito pesada para alguns crimes de menor potencial ofensivo, como esses do transporte público e aí entrou a figura da importunação sexual. Mas sempre que surge uma lei, demora muito para que todos os agentes públicos consigam aplicar de maneira correta. Até hoje encontrei registros de atentado violento ao pudor, que é um crime que não existe há mais de 10 anos. Quando chega na Justiça, se chegar, porque são vários gargalos nesse caminho, aí a Justiça muda a tipificação — explica a jornalista.
A culpa nunca é da vítima
Algo que surpreendeu a jornalista durante a apuração foi o fato de que muitas sobreviventes de violência sexual que tinham denunciado os crimes não sentiam raiva ou rancor de seus agressores, mas sim de representantes das instituições públicas que em algum momento as culpabilizaram pela agressão que sofreram.
— Me chamou a atenção ver como as vítimas que prestam queixa têm geralmente uma mágoa muito maior das instituições que não as acolheram bem do que do próprio estuprador — conta.
Ela relembra o caso do estupro coletivo em Castelo do Piauí, em maio de 2015. Araújo conversou com uma das três sobreviventes do crime (a quarta vítima morreu ao ser arremessada de um penhasco depois do estupro), que relatou ter perdoado seus agressores, mas não o promotor:
— Ela diz que superou as mágoas, até encontrou um dos menores, que foi solto. Passou por ele na rua e sentiu um pouco de medo, mas não ódio. Mas ela tem raiva até hoje do promotor que perguntou pelo telefone “vem cá, vocês foram até lá só para tirar foto mesmo?”, insinuando que, de alguma forma, elas teriam buscado aquela situação.
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Em outro caso relatado no livro, a sobrevivente de um estupro em Peruíbe, no litoral paulista, conta que ainda sente raiva da juíza que analisou seu caso e que acreditou na versão do estuprador, que disse que a relação sexual havia sido consensual, mesmo acontecendo em meio a um assalto.
— Tinham vários indícios de que não foi isso, tanto que ele foi solto e cometeu o mesmo crime de novo. Essa menina ficou com muito ódio dessa juíza. Acho que essa é a pauta que a gente precisa trabalhar: como as instituições recebem essas vítimas — afirma a jornalista, que, ao longo da sua apuração, conseguiu identificar que a Justiça ainda repete o erro de julgar o comportamento da vítima em vez do comportamento de seu abusador.
— A nossa sociedade é machista. Nossos policiais, juízes, médicos e promotores fazem parte dessa mesma sociedade. Então a vítima muitas vezes é muito mais julgada do que o estuprador.
Tentando entender o porquê
Como parte da pesquisa para o livro, Araújo conversou com diversos homens condenados e presos pelo crime de estupro. Ela explica que, como jornalista, precisava ouvir os dois lados:
— Não se trata de dar voz a esses criminosos. Mas eu fui conversar com eles para tentar responder uma pergunta que ficou na minha cabeça e eu ainda não consegui achar a resposta: por quê? Mas a esmagadora maioria nega os crimes. Até porque há um estigma muito grande do estuprador na cadeia. De cada dez entrevistas que eu fazia com estupradores, uma rendia. Mas quando encontrava aqueles que falavam, que confessavam o que aconteceu, era muito difícil conter a raiva, o espanto — conta.
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Ela afirma ter concluído, no entanto, que a maioria dos criminosos que são punidos são os “psicopatas” ou estupradores em série. Os que agem dentro da universidade, em ambientes de trabalho ou até mesmo dentro de casa não vão para cadeia. Há também um recorte racial e de classe evidente:
— Encontrei um ou outro caso de estuprador de classe média preso. Um deles era um sargento da aeronáutica, mas também se enquadrava nesses casos de estuprador em série, que atacava no meio da rua e, assim, as mulheres têm mais facilidade para denunciar e a própria polícia se esforça mais para pegar. Mas nos casos que ocorrem dentro de casa, com uma vítima só, uma filha, uma sobrinha, é muito mais difícil de provar. As pessoas também têm medo de denunciar, se sentem culpadas por que vão esfarelar aquela família. Os sentimentos de culpa, vergonha e nojo são comuns — afirma Araújo.
Da observação para a ação
Entre as experiências que vivenciou nos quatro anos de investigação, a jornalista cita um caso em que saiu da posição de observadora e partiu para ação, participando do resgate de duas meninas que eram abusadas pelo pai na ilha do Marajó, no Pará. Araújo foi até o local de barco acompanhada de um delegado da região, do pesquisador do livro, Marcos Di Genova, e da freira Henriqueta Cavalcante.
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— O pai já tinha sido preso pelo crime de estupro, mas acabou inocentado pela Justiça porque as meninas mudaram o depoimento e ele retornou para a mesma casa. Eu e a irmã fomos conversar com as meninas, e elas nos contaram que ele tinha voltado pior do que era antes, relataram abusos diários. Elas com 15, 16 anos, não tomavam pílula e não havia camisinha. As chances de acabarem engravidando do próprio pai era enorme — narra a jornalista, e continua: — A gente ficou pensando o que poderia fazer. E esse é um momento em que você deixa de ser observadora e acaba se metendo um pouco na história. Para gente que é jornalista é um pouco difícil sair dessa posição, mas na hora conversamos com o delegado e ele falou para tirarmos as meninas de lá.
Ela conta que mãe e filhas foram retiradas da casa e levadas para Belém com a comitiva de barco. Para ela, o caso foi importante para retratar “como o Estado é ineficiente em cuidar das vítimas”:
— Eu e a freira entramos de testemunhas no caso, mas nunca fomos chamadas para depor. Ele acabou inocentado de novo. A partir desse caso dá para entender porque tantas vítimas nem prestam queixa de estupro no Brasil.
Por Leda Antunes (O GLOBO)