Rede de disseminação de fake news cobrava para não atacar políticos do Rio de Janeiro
A marginalidade anda solta nas redes sociais e a justiça não toma nenhuma providência quanto a esse tipo de crime
Uma rede de disseminação de notícias falsas nas redes sociais foi usada, por pelo menos três anos, para atacar prefeitos, deputados, vereadores e candidatos que se negavam a pagar valores mensais a uma empresa de marketing político.
Documentos da investigação, obtidos pelo GLOBO, revelam a existência de um conjunto de 25 páginas — que se apresentavam como jornalísticas — e mais de 60 perfis inautênticos. O esquema de replicação era capaz de alcançar 700 mil usuários, segundo dados do CrowdTangle, ferramenta de análise de dados do Facebook. Parte das páginas e perfis segue no ar até hoje.
Políticos de 12 cidades do Estado do Rio foram alvos do grupo liderado pelo empresário Igor Patrick de Souza. Políticos conhecidos da região foram vítimas de extorção do grupo criminoso num esquema que atingiu praticamente todo o estado do Rio.
O grupo era liderado pelo empresário Igor Patrick de Souza, que teve a prisão decretada no fim do ano passado e está foragido — ele é réu em um processo que corre na Justiça estadual, derivado da Operação Usuário Fake, do Ministério Público do Rio (MP-RJ) e da Polícia Civil.
Souza abordava as vítimas e, caso não aceitassem firmar os contratos, iniciava as campanhas de difamação. Na outra ponta, oferecia também os serviços de “remoção de conteúdos negativos” das redes sociais. Os custos variavam entre R$ 2.100 e R$ 8 mil.
Em uma tentativa de aparentar credibilidade, a rede administrava páginas com nomes parecidos com os usados na imprensa profissional: “Caxias TV”, “Folha de Saracuruna” e “Informe Cabo Frio”, por exemplo. Para disfarçar a recorrência dos ataques, a estratégia usada era alternar as publicações com notícias cotidianas das cidades onde o esquema atuava.
Um dos primeiros políticos a entrar na mira do grupo foi o deputado federal Aureo Ribeiro (Solidariedade-RJ), que começou a ser atacado nas redes sociais antes da eleição de 2018. Meses depois, recebeu uma oferta de Souza, que condicionou o fim da perseguição ao acerto financeiro.
O acordo foi fechado, ao custo de R$ 3 mil — procurado pelo GLOBO, o deputado disse que foi orientado por advogados a pagar. No período de contratação, as publicações negativas foram interrompidas. Mas, no momento em que os pagamentos pararam, novas ameaças e postagens voltaram a acontecer.
“Cansado de esperar”
Em um dos áudios obtidos na investigação, Souza deixa evidente o tom ameaçador, afirmando que faria uma série de montagens contra o parlamentar. “Eu já estou cansado de esperar. Já tem três meses que (ele) não dá nada, tu vai ver o que eu vou fazer com o Áureo amanhã”, disse Souza a um de seus auxiliares.
Na mesma época, postagens difamatórias, sem provas, se espalharam pelas páginas gerenciadas pelo grupo — uma delas afirmava que o deputado “sempre comete inúmeros crimes contra a administração pública”.
O esquema é similar ao registrado em Duque de Caxias, envolvendo o prefeito Washington Reis (MDB). Entre dezembro de 2018 e março de 2020, a Debrito, empresa de publicidade contratada pela prefeitura, chegou a pagar R$ 8 mil mensais para que a firma do grupo criminoso fizesse produção de conteúdo e compartilhamento nas redes sociais das postagens da administração municipal. A prefeitura do município foi procurada e informou que a Debrito se pronunciaria. A empresa alega que contratou as páginas de Souza em função da audiência e pela “cobertura” realizada.
Depois de cinco meses sem pagamento, os envolvidos elaboraram um texto para “dar porrada” em Reis nas páginas que administravam.
O material , no entanto, não foi publicado, pois os valores foram pagos após sucessivas ameaças, segundo a investigação — o grupo guardava um arquivo de “ataques não postados”. Mas, com uma nova interrupção, Reis voltou a ser vítima do grupo em dezembro do ano passado — o prefeito registrou um boletim de ocorrência contra Souza, por injúria.
— Ele (Souza) não tinha bandeira (partidária), atacava de políticos de direita e esquerda. O fim dele era exclusivamente financeiro. Era comum, em períodos eleitorais, pedir (recursos) tanto para o atual prefeito quanto para os concorrentes. Se todo mundo pagasse, ele ficava neutro — afirma o delegado Pablo Sartori, titular da Delegacia de Repressão de Crimes de Informática (DRCI).
Vídeo editado
Contra Leone Pereira de Lima, que foi candidato a vereador em Duque de Caxias no ano passado, as publicações usaram termos agressivos, como “vagabundo”, e foram além: o grupo falseou uma reportagem do “Fantástico”, da TV Globo.
Áudios de WhatsApp obtidos no curso da investigação mostram Souza orientando seus auxiliares a editarem o vídeo para incluir uma foto da vítima e menção a seus parentes.
Na “nova versão”, Lima era apresentado como alvo de uma denúncia do Ministério Público por crimes relacionados a desvio de dinheiro público — na reportagem verdadeira, o candidato sequer é citado.
Também no ano passado, em Magé-RJ, o agora ex-prefeito Rafael Tubarão (Cidadania) foi alvo de campanha de difamação depois de não ter aceitado contratar a empresa.
Atuação envolvia divulgação de pesquisas falsas e invasão de domicílio
A tática do grupo liderado pelo empresário Igor Patrick de Souza para extorquir dinheiro de políticos incluía divulgação de pesquisas falsas, criação de centenas de perfis “fakes” na internet e até uma tentativa de invasão de domicílio, conforme áudios obtidos pela investigação do Ministério Público do Rio (MP-RJ) e da Polícia Civil.
O grupo inventou, por exemplo, uma pesquisa em que o vereador Clovinho Mororó (Patriota), de Duque de Caxias, aparecia com rejeição de 71% da população. Há ainda momentos em que Souza aparece ordenando seus comparsas a realizarem enquetes eleitorais no Facebook, com intuito de interferir na decisão de voto ou para difamar autoridades.
Em outra frente, centenas de perfis falsos foram criados para aumentar a visibilidade do conteúdo divulgado. O grupo organizava a seleção de amigos a partir de gênero, idade e cidade, na tentativa de criar um perfil de nicho.
Assim, Manoel Borges era um idoso religioso que reclamava de políticos da cidade. Já Gabryelli Melo era era uma jovem ativa politicamente. Ambos nunca existiram, mas faziam publicações idênticas e eram gerenciados pelo grupo. Até mesmo o fornecimento clandestino de chips de celulares foi usado para facilitar a criação desses “personagens”.
Uma das vítimas da organização criminosa foi a hoje prefeita de Guapimirim-RJ, Marina Fernandez. As ofensas começaram a partir do momento em que ela decidiu, no segundo semestre de 2019, que tentaria se candidatar.
De modo coordenado, perfis falsos impulsionavam ataques à então deputada estadual. Mas o grupo foi além. No dia 27 de abril do ano passado, Souza foi flagrado tentando invadir a residência de Marina com um homem bêbado, a fim de produzir materiais para postar nas redes sociais e difamá-la. A polícia foi chamada para coibir a ação.
Em nota, o Facebook disse que coopera com as autoridades brasileiras e cumpre medidas judiciais válidas de remoção de conteúdos e contas, além de fornecer dados, em conformidade com os termos da lei. O GLOBO não conseguiu contato com a defesa de Souza. Em vídeo publicado nas redes sociais, a mãe do empresário disse que seu filho está sendo alvo de “chantagem” de grupos políticos e que não fez negociações para obter benefícios.
Por Pedro Capetti e Bernardo Mello (O Globo)