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Família Bolsonaro movimentou quase R$ 3 milhões em espécie, em valores corrigidos, durante 24 anos

Transações em dinheiro vivo incluem compra de imóveis e pagamentos de boletos relativos a despesas pessoais

RIO DE JANEIRO — Membros da família do presidente Jair Bolsonaro movimentaram, em 24 anos, R$ 1,5 milhão em dinheiro vivo, empregado em transações imobiliárias e no pagamento de despesas pessoais. O montante corresponde à soma de operações em espécie que envolveram o senador Flávio Bolsonaro e o vereador Carlos Bolsonaro, filhos do presidente, ambos filiados ao Republicanos, bem como as duas ex-mulheres do atual ocupante do Palácio do Planalto, Rogéria Bolsonaro e Ana Cristina Valle. A conta chega a R$ 2,95 milhões em valores corrigidos pela inflação.

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Dedicados ao estudo dos mecanismos usados para o combate mundial à prática de lavagem de dinheiro, especialistas em direito e transparência reprovam a utilização de dinheiro vivo para transações que poderiam ser feitas por meio do sistema bancário comum. A prática, embora não seja ilegal, dificulta a rastreabilidade da origem do dinheiro e pode ser utilizada para ocultar aumentos injustificáveis de patrimônios, decorrentes de recursos ilícitos.

Revelada ontem pelo GLOBO, a transição mais antiga desse tipo feita pela família ocorreu em janeiro de 1996, quando Rogéria Bolsonaro adquiriu um imóvel em Vila Isabel, na Zona Norte do Rio, por R$ 95 mil. Mãe dos três filhos mais velhos de Bolsonaro, Rogéria estava casada com o então deputado em regime de comunhão parcial de bens — o casal se separou entre 1997 e 1998. Ela não se pronunciou sobre a aquisição.

No casamento seguinte, Ana Cristina Valle, a segunda mulher de Bolsonaro, comprou 14 imóveis enquanto esteve ao lado do marido parlamentar. Cinco deles — duas casas, dois terrenos e um apartamento — foram pagos em dinheiro vivo entre 2002 e 2006, movimentando R$ 243 mil. Os negócios imobiliários do casal, que renderam um patrimônio avaliado em R$ 3 milhões na data da separação, foram revelados no mês passado em reportagem da revista Época. Na ocasião, a defesa de Ana Cristina afirmou repudiar “com veemência qualquer afirmação, de quem quer que seja, indicando a prática de qualquer ato ilícito” por parte da cliente.

Flávio Bolsonaro também manteve o hábito de fazer pagamentos em dinheiro vivo, conforme mostram as movimentações dele identificadas pelo Ministério Público (MP) do Rio de Janeiro entre 2008 e 2018, no âmbito da investigação da “rachadinha” no antigo gabinete de Flávio na Assembleia Legislativa do Rio (Alerj).

Boletos em espécie

Enquanto ocupava uma cadeira de deputado estadual na Casa, Flávio comprou e vendeu imóveis com quantias em espécie e quitou, da mesma maneira, boletos referentes a despesas pessoais. Houve também a utilização de uma quantia de R$ 31 mil para cobrir prejuízos que ele e o irmão, Carlos Bolsonaro, tiveram após investir juntos na Bolsa de Valores, em 2009. As transações em espécie envolveram ainda a mulher do parlamentar, Fernanda Bolsonaro, e o ex-assessor Fabrício Queiroz, preso preventivamente em regime domiciliar.

Conforme revelado no último domingo pelo GLOBO, o MP descobriu que Flávio utilizou, em 2008, R$ 86,7 mil em espécie na compra de 12 salas comerciais na Barra da Tijuca. Em depoimento aos promotores, em 7 de julho, o próprio senador admitiu ter feito o pagamento e afirmou ter pego emprestado dinheiro do pai, de um dos irmãos e de Jorge Francisco, que à época chefiava o gabinete de Jair Bolsonaro na Câmara dos Deputados. Flávio disse também que devolveu os empréstimos posteriormente. As salas foram revendidas por ele depois.

Operações semelhantes ocorreram na compra dois apartamentos na Zona Sul carioca: um em Copacabana, pago em 2012 com R$ 638,4 mil em dinheiro vivo, e outro em Laranjeiras. O segundo imóvel teve a primeira parcela paga uma semana após Queiroz ter depositado R$ 25 mil em espécie na conta de Fernanda Bolsonaro, responsável pela quitação. Ainda na aquisição desse imóvel, um policial militar chamado Diego Sodré de Castro Ambrósio admitiu ter pago uma prestação de R$ 16,5 mil para quitar a compra feita pelo parlamentar, de quem afirmou ser amigo.

Cinco anos depois da compra, em 2017, Flávio recebeu, ao longo de um mês, 48 depósitos fracionados em sua conta corrente, totalizando R$ 96 mil em dinheiro vivo. Quando as informações sobre elas vieram a público, o filho do presidente afirmou que os valores eram provenientes da venda do apartamento em Laranjeiras.

Ainda na área de negócios imobiliários, Flávio pagou R$ 30 mil em espécie ao empresário David Macedo Neto durante a compra de um apartamento em um condomínio na Avenida Lucio Costa, na Barra da Tijuca, em 2014. A dívida quitada, dessa vez, seria referente aos móveis deixados por Macedo no local. Aos investigadores, quando questionado sobre essa transação, o parlamentar afirmou que “tinha uma coisinha guardada em casa” e, por isso, preferiu “fazer desse jeito” — sem o intermédio de um banco.

⠀ Foto: Editoria de arte

Difícil de rastrear

Ainda durante o período em que exerceu quatro mandatos para os quais foi eleito na Alerj, Flávio teve 116 boletos referentes a despesas pessoais, como mensalidades escolares das filhas e de planos de saúde, quitados em dinheiro vivo. O montante empenhado nesses pagamentos foi de R$ 261,6 mil, entre 2015 e 2018. Houve ainda os pagamentos de dois boletos do tipo, que somaram R$ 6,9 mil, feitos em 2018 por Queiroz, identificado pelo MP por meio das imagens de câmeras de segurança da agência bancária em que ocorreu a quitação.

A defesa de Flávio Bolsonaro defendeu, no último final de semana, que “o patrimônio do senador é totalmente compatível com seus rendimentos e isso ficará inequivocamente comprovado dentro dos autos” do processo sobre a “rachadinha”. Os advogados também reclamaram dos vazamentos dos depoimentos do senador ao MP.

De acordo com advogado Thiago Bottino, professor da FGV, o padrão identificado nas movimentações financeiras da família Bolsonaro, com uso de dinheiro em espécie, não constitui ilegalidades. No entanto, alerta o acadêmico, há um consenso global sobre a facilidade que a prática implica para quem deseja disfarçar a origem ilícitas de recursos.

— O dinheiro em espécie não é facilmente rastreável e costuma ser utilizado para disfarçar lucros que são produtos de crimes de corrupção, tráfico, sonegação fiscal e outros ilícitos cujos rendimentos encontrarão uma dificuldade para serem incorporados aos patrimônios dos autores ou beneficiários — explica o advogado.

Para o economista Bruno Brandão, diretor executivo da Transparência Internacional no Brasil, as transações imobiliárias são ativos relevantes para a ocultação da origem ilícita de recursos:

— Para usufruir de valores maiores gerados pela corrupção, políticos precisam utilizar bens de grandes valores para que possam desovar o montante que amealharam. Por isso, os imóveis são muito utilizados — afirma Brandão, completando: — As transações em dinheiro vivo nesses e em outros contextos deveriam surpreender os cidadãos comuns, que jamais fazem movimentações como essas, em valores tão altos.

Por João Paulo Saconi, Juliana Dal Piva, Chico Otávio e Pedro Capetti (O GLOBO)

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